20 de novembro de 2020 – Dia da Consciência Negra.
Na véspera, no estacionamento de um Supermercado Carrefour, em Porto Alegre, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, foi espancado até a morte por dois seguranças.
Das toupeiras, aprendemos a cavar túneis.
Dos castores, aprendemos a fazer diques.
Dos pássaros, aprendemos a fazer casas.
Das aranhas, aprendemos a tecer.
Do tronco que rolava ladeira abaixo, aprendemos a roda.
Do tronco que flutuava à deriva, aprendemos a nau.
Do vento, aprendemos a vela.
Quem nos terá ensinado as manhas ruins?
De quem aprendemos a atormentar o próximo e humilhar o mundo?
Eduardo GALEANO, Bocas do tempo.
As perguntas de Galeano ressoam em nossos ouvidos, um dia depois daquilo que alguns estão chamando de tragédia. Não foi tragédia o que aconteceu em Porto Alegre. A tragédia nos remete a algo já determinado, que acontece sem que possamos impedir. A vida humana, as relações sociais, não são trágicas. Elas são dramáticas – dependem de escolhas, de intencionalidades. Então vale falar, sim, no drama que, filmado, invadiu nossas casas, como um soco no estômago, nos deixando, mais uma vez, perplexos e indignados.
Assisti há algum tempo uma conferência de José Saramago, na qual ele afirmava que violência é algo do mundo natural – o leão salta violentamente sobre sua presa, o mar irrompe violentamente na praia, derrubando muros, a lama destrói violentamente as habitações quando a chuva faz deslizar as encostas. O nome certo para aquilo que chamamos de violência humana é crueldade, violência intencional, às vezes planejada. João Alberto foi morto cruelmente.
A crueldade é o nível máximo atingido pelo ser humano que quer levar o sofrimento ao outro. É, na verdade, o nível em que não se leva o outro em consideração, tem-se em relação a ele total indiferença. É aquilo que Jurandir Freire Costa chamou de alheamento, espaço em que fica excluída a alteridade, núcleo da atitude ética – “A ética começa quando entra em cena o outro”, afirma Umberto Eco. No alheamento, o outro não é alter, em cuja presença se afirma minha identidade. Ele é alienus, o alheio, aquele com o qual não tenho a ver, que não é meu semelhante.
Nas imagens de Porto Alegre, me incomoda e soa incompreensível a atitude da pessoa que, muito próxima, quase envolvida, filma no celular o espancamento. Por que ela não terá procurado impedir a ação dos agressores? Por que terá optado por registrar o “espetáculo”? Será que teria procurado intervir se João Alberto fosse seu irmão, seu amigo, outro/alter? Ou será que para ela ele era alienus/alheio?
São muitas as perguntas e nos faltam respostas, pelo menos imediatamente. Mas diante desses acontecimentos, reafirma-se a certeza de que é preciso continuar a luta para superação das situações dramáticas como o preconceito e a discriminação que vemos acontecer estruturalmente no Brasil e no mundo. Enquanto os responsáveis por essas situações não forem reconhecidos e punidos, todos nós estaremos envergonhados.
Hoje, dia da Consciência Negra, somos todos João Alberto Silveira Freitas.